constituição

Toda sociedade política é “constituída”, de uma forma ou de outra; ela tem a sua maneira de ser, ou seja, a sua “constituição”.

Com o sentido de lei fundamental do Estado, o termo “Constituição” começou a ser empregado depois da independência das colônias inglesas na América (1776) – que, em 1787, formaram os Estados Unidos – e da Revolução Francesa (1789). Até então falava-se de “leis fundamentais”. Embora não possuíssem a sistematização arquitetônica das constituições modernas, as Leis Fundamentais do Reino estabeleciam uma superlegalidade, fixavam os princípios básicos da estruturação do poder e asseguravam certos direitos fundamentais dos indivíduos e dos agrupamentos. 

Carl Schmitt (1888-1985) relaciona os sete sentidos que pode ter o termo “Constituição” quando usado para designar a lei fundamental do Estado. São os seguintes: 

1) Norma absolutamente inviolável e não suscetível de reforma.

2) Norma relativamente invulnerável, que pode ser reformada mediante processo extraordinário.

3) Princípio último da unidade política e do ordenamento social do Estado.

4) Alguns princípios particulares da organização do Estado, por exemplo, os direitos fundamentais, a divisão de poderes, o princípio representativo.

5) A mais alta norma num sistema de imputações normativas (a lei das leis)..

6) Certa regulamentação orgânica de competência e procedimento para as atividades estatais de maior importância.

7) Delimitação das faculdades ou atividades estatais.

Em sentido material, toda e qualquer sociedade política, ainda a mais rudimentar, sempre possui uma Constituição (escrita ou costumeira), vale dizer, uma organização da estrutura institucional. A Constituição Política, porém, é obra da “vontade livre” dos homens, ou, mais precisamente, dos homens que se põem de acordo (cum statuere).

 Tem origem convencional, e frequentemente nasce de um pacto, de um compromisso entre o detentor da autoridade e aqueles que defendem suas liberdades, ou entre os representantes de diferentes correntes políticas de uma assembleia constituinte.

A bilateralidade das obrigações do rei e dos súditos era um princípio essencial do direito público medieval, enunciado já nos tempos da monarquia antiga. A mesma ideia de reciprocidade está na base do regime feudal, constituído sobre o reconhecimento do valor da fidelidade. Na Idade Média já se ensinava que o rei deve jurar respeito ao povo, suas liberdades e franquias. Não se podia ter soberania plena, legitimidade completa, sem o respeito pelo direito histórico e pelo cumprimento das leis fundamentais do reino.

Esse princípio acompanhou o desenvolvimento das instituições até o advento do absolutismo, após o qual a concórdia do período medieval se dissolveu na noção romana de imperium retomada pelos legistas, com a origem popular da soberania, contra a tese da monarquia do direito divino. Interpretavam polemicamente o pactum subjectionis como uma delegação do poder feita ao príncipe pelo povo, no qual se via o sujeito imediato da autoridade originária de Deus.

Com a Revolução de 1789, o direito abstrato prevalece sobre o direito histórico. A ordem tradicional é derrubada e constrói-se em seu lugar essa nova sociedade. A Constituição torna-se elemento de origem da ordem jurídico-positiva, servindo de ponto de partida para as demais leis e fonte primeira dos direitos e das liberdades. Esta ideia, proveniente dos direitos do homem segundo o jusnaturalismo racionalista, conduziu ao mais rígido positivismo jurídico, que reduz todo o direito positivo ao direito fundamental da constituição, expressão da vontade soberana do legislador.

A Constituição torna-se o resultado da vontade criadora do povo. É a ideia que nos permite chegar ao fundo da concepção revolucionária da constituição política. Sob o absolutismo monárquico, a vontade do príncipe era lei, e a nova concepção transferia o mesmo atributo à vontade do povo. O povo cria ex nihilo a ordem jurídica: eis a essência da teoria revolucionária do pouvoir constituante da “constituição”, ato desse mesmo poder.

A Constituição é concebida não enquanto acordo, mas principalmente como declaração da vontade do povo soberano. A constituição outorgada é um ato unilateral de declaração da vontade do Chefe de Estado. A constituição elaborada por uma Assembleia Constituinte é, sem dúvida, um compromisso, um acordo, mas desse compromisso das diversas correntes políticas representadas na Constituinte resulta a apuração da vontade geral, a vontade da maioria, a vontade do povo, decidindo por meio de seus mandatários. Eis o decisionismo no plano democrático.

Na ordem prática, porém, não se pode perder de vista o mecanismo que deflagra esse decisionismo. Isto porque a democracia moderna é uma democracia de partidos. E a vontade do povo, que se manifesta por meio de seus representantes, passa ainda por outro intermediário: o partido político. Verifica-se, então, que a vontade do povo é geralmente a vontade de um grupo, que controla o partido dominante, seja a direção desse partido, seja algum dos grupos de pressão que se multiplicam em nossos dias e entre os quais é preciso destacar sobretudo aqueles que representam as grandes forças econômicas.

Por sua vez, os arranjos e combinações entre vários partidos ou grupos se processam sem nenhuma participação efetiva da vontade do povo. Será preciso fazer-se abstração dessa realidade, para examinar a teoria da constituição tal como foi posta a partir de 1789. Desde então, a constituição é a dogmático-formal, ou seja, o documento solene, elaborado por um órgão composto de mandatários do “povo soberano” e investido das prerrogativas genéticas do pouvoir constituant, apto, desse modo, a criar as normas fundamentais de ordem jurídico-política.

Por isso, somente é atribuída legitimidade à constituição ungida pelo “poder constituinte” – inerente ao povo ou à nação – e que é exercido por seus delegados reunidos em “Assembleia Nacional Constituinte”, eleita por “sufrágio universal”, instrumento indispensável à manifestação da “soberania do povo” ou “soberania nacional”. Essa vontade nacional é sempre legal, pois ela é a lei mesma, e é legal independentemente de qualquer outra condição, visto que é a origem de toda a legalidade.

Conceito: Em sua generalidade, as constituições atuais podem ser definidas como um conjunto de normas jurídico-políticas que caracterizam a forma de Estado e a de governo, o processo de aquisição e exercício do poder, a estruturação de seus órgãos e a delimitação de suas competências, dispondo também acerca dos direitos fundamentais e suas garantias.

Classificação: Várias são as denominações de constituição adotadas pelos autores, conforme o critério a que eles se atenham.

Conteúdo: Segundo o conteúdo, chamar-se- á constituição material, por encerrar as normas estruturais do Estado, o estabelecimento de seus órgãos e os direitos fundamentais; ou constituição formal, quando se tratar de documento solene, emanado do “poder constituinte” e cuja modificação deve obedecer a procedimento especial previsto em seus dispositivos.

Forma: No tocante à forma, ter-se-á uma constituição escrita quando o documento for elaborado pelo poder competente, que sistematiza – em geral num só texto – as normas fundamentais da organização do Estado; ou não-escrita, a constituição cujas normas derivam de costumes ou praxes consolidadas pelo tempo e de jurisprudência firmada.

Processo Elaborativo: Quanto ao processo elaborativo, diz-se constituição dogmática a que é produzida pela “assembleia nacional constituinte” ao editar preceitos fundados em doutrinas políticas (dogmas); ou constituição consuetudinária ou histórica, a que decorre da sedimentação, ao longo do tempo, de tradições que consubstanciam uma forma típica de organização sócio-política, cujas regras básicas em geral têm raízes em costumes seculares, como é o caso da Inglaterra.

Origem: Em função da origem, é considerada democrática a constituição elaborada pela “assembleia nacional constituinte”, adrede eleita para esse fim; ou outorgada, a elaborada por quem detém o poder, sem proceder à audiência prévia do povo, enquanto titular do “poder constituinte”, embora possa o povo manifestar-se mediante referendum.

Estabilidade: Sob o aspecto da estabilidade, famosa é a classificação de James Bryce (Studies in History and jurisprudence, voI. I, Essay, 3): rígida (stationary, solid) é a constituição que somente poderá sofrer modificações mediante estrita observância de certas formalidades (maioria qualificada, consulta aos Estados federados – como nos Estados Uni- dos e na Suíça – realização de referendum popular – como na Suíça e na Austrália – etc.), formalidades essas mais severas do que as exigidas para a elaboração de leis ordinárias ou complementares; e flexível (moving, fluid) é a constituição modificável pelo processo legislativo ordinário. Também se considera semi-rígida a constituição cujas disposições são elas parte rígidas, ou seja, somente alteráveis por processo legislativo especial, e em parte flexíveis, ou seja, alteráveis pelo processo legislativo ordinário, como era previsto no artigo 178 da Constituição brasileira de 1824: “É só Constitucional o que diz respeito aos limites, e atribuições respectivas dos Poderes Políticos, e aos Direitos Políticos e individuais dos Cidadãos. Tudo o que não é Constitucional, pode ser alterado sem as formalidades referi- das pelas Legislaturas Ordinárias.” Pode-se falar, ainda, de constituição hiper-rígida, que é aquela que estabelece certos limites materiais intransponíveis para a realização da própria reforma. É o caso das constituições que vedam, taxativamente, a apreciação de qualquer emenda tendente a abolir a República (todas as constituições francesas, desde a de 1875; igualmente as brasileiras, desde a de 1891 – exceto a de 1988-, e a italiana, de 1947) e a Federação (todas as constituições republicanas do Brasil e a Lei Fundamental da República Federal da Alemanha). De outro lado, há constituições que prevêem a própria modificação total sem a ruptura da “legalidade”, com a mudança até mesmo da forma de governo e da forma de Estado. Foi assim que se deu a substituição da Constituição da Confederação Helvética de 1848, com a promulgação, em 1874, por meio de revisão total, de uma nova constituição.

Há, outrossim, regras políticas não codificadas – ou seja, resultantes de costumes e práticas iterativas – que têm igual ou maior força do que normas constitucionais formais. É o que se verifica nos Estados Unidos com o “controle da constitucionalidade das leis”, o “direito de veto” do Presidente, a existência do Electoral College nas eleições presidenciais, a expansão do poder federal em detrimento das competências dos Estados-membros.

Também cabe observar que o formalismo encarnado na “Assembleia Nacional Constituinte” vem perdendo a auréola mítica. O ocorrido no próprio berço da doutrina do pouvoir constituant (que, de 1791 a 1946, já havia dado à França 15 constituições) é digno de registro. A Constituição de 1958, que fez nascer a V República, na França, decorreu de um projeto elaborado por assessores do governo, segundo um modelo prefixado pelo general Charles de Gaulle (1890-1970), com vistas a pôr cobro à anarquia que se instalara na vida político-administrativa da França a partir da Constituição de 1946. Esse projeto foi submetido a um Comité Consultif Constitutionnel composto de 39 membros (uma parte, de deputados de legislaturas passadas, e outra parte, de elementos escolhidos pelo governo). Em seguida, o Conselho de Estado deu o seu placet ao projeto. E, em 28 de setembro de 1958, o povo francês, que não participou da elaboração da Constituição, aprovou-a, por maioria esmagadora, mediante referendum. Tendo reformulado o regime político em alguns de seus aspectos mais anarquizantes, ainda assim a Constituição de 1958 manteve intactos os princípios do voluntarismo rousseauniano, capaz de conduzir, pelas vias democráticas, ao estatismo totalizante, como demonstra, na mesma França, a vitória eleitoral dos socialistas em 1982.

Embora se pretendesse decapitar o absolutismo do poder real ao dogmatizar, em 1789, o artigo 16 da Déclaration des Droits de I’ Hom- me e du Citoyen, que toute societé dans laquelle la garantie des droits n ‘est pas assurée, ni la séparation des pouvoirs determinée, n ‘a point de constitution – , a história das instituições políticas permeadas pelos preceitos do constitucionalismo moderno revela que o formalismo jurídico-político relativo à separação de “poderes” e às “garantias individuais” não tem sido obstáculo ao crescimento do poder do Estado. E deve-se isso ao fato de as constituições se fundarem nos princípios do individualismo revolucionário, que defluem da concepção mítica o homem como ser associaI, e propiciando a expansão do Estado ao tentar corrigir as distorções sociais. Por se tratar de constituições ideológicas, prenhes de formulações apriorísticas, vale dizer, desligadas da vida, acabaram por encontrar nos fatos resposta adversa, e às vezes trágica, às pretensões visadas, pois se frustraram tanto a limitação do poder do Estado, quanto a garantia das liberdades individuais.

A propósito, assinala Nelson de Souza Saldanha: “como se sabe e creio que Laski foi um dos primeiros a apontar o problema, há um caminho direto de Rousseau a Hegel, no tocante à valorização do Estado. Em Rousseau, a vontade geral tende a estatizar-se, e a onipotência do legislador não apenas conduz a um juspositivismo latente (diante do jusnaturalismo dos ideais revolucionários), como leva a um conceito de liberdade em que a adesão à ação do Estado é elemento central. E Carl Schmitt demonstrou, em seu livro sobre a história do conceito de ditadura, que a atuação concreta do pouvoir constituant implicou a presença de uma ditadura de comissários do povo, em consonância com o Comité du Salut Public e outros aspectos. Enfim, a complicação da ‘máquina administrativa’ foi aumentando, e dentro do constitucionalismo como movimento e programa a realidade do Estado constitucional se tornou prevalecente e absorvente. O crescimento da presença do Estado se daria justamente através das novas formas constitucionais, cada vez mais requintadas” (“Da Mag- na Carta ao Poder Constituinte”, em As tendências atuais do Direito Público, Forense, 1976, pp. 318/319).

Esse requinte chega ao clímax no pensamento jurídico-constitucional com o normativismo kelseniano. Segundo Kelsen, o dever ser é independente do ser, ou seja, desvinculado de qualquer valor transcendente, de qualquer elemento de natureza ética, histórica, política, etc. A norma é dever ser que radica em outro dever ser, e assim sucessivamente, num encadeamento de normas subordinadas e subordinantes segundo uma estrutura piramidal cujo ápice a “norma hipotética fundamental” (Grundnorm), a norma primária. Por conseguinte, o Estado não é senão um sistema jurídico conforme a essa “norma hipotética fundamental” (tida como “fundamento de validade da Constituição”). A Grundnorm, porém, não é norma de direito positivo, é simplesmente lógico-jurídica. É pressuposta. Daí por que cada sistema jurídico tem a sua “norma hipotética fundamental”, que a ele dá validez mediante processo meramente lógico-formal. Esse formalismo conduz ao abstracionismo radical e ao próprio absolutismo constitucional: “Todo direito é direito do Estado, como todo Estado é Estado de direito” (Hans Kelsen, Der Soziologische und der juristiche Staatsbegrilf, ].C.B.Mohr, 1928, p. 253). Assim, qualquer direito “justifica” qualquer Estado, vale dizer, qualquer Estado justifica a si mesmo, pois é ele a fonte única do direito.

Tudo isso vinha a ocorrer porque consumado que foi o desprezo pela ordem natural das coisas, isto é, pela constituição natural e histórica da sociedade (com a multivariedade de grupos sociais autônomos, ou seja, detentores de direito próprio à auto-organização e ao autogoverno, suscetível por isso mesmo de propiciar a limitação concreta do poder político e a consequente preservação das liberdades) – as constituições passaram a “construir” o Estado, apoiando-o em bases ideológico-abstratas, fato este que, na prática, vem sujeitando os homens a verdadeiro regime de servidão, ao manietá-los nas malhas da tecnoburocracia peculiar ao estatismo e ao totalitarismo modernos. Na verdade, não é possível escapar ao dilema: ou o Estado existe para o homem, ou o homem existe para o Estado. E a constituição em que este se estruturar terá que levar em conta um dos lados desse dilema, que envolve necessariamente uma ordem de valores vinculada a uma concepção da vida e do mundo (WeltanschauunfiJ. No entanto, é a concepção do homem abstrato que vem prevalecendo nas instituições políticas modernas.

Até mesmo num país como os Estados Unidos, onde a incidência do abstracionismo político é menos profunda (pois considerável substrato histórico impregna as instituições políticas norte-americanas), seus efeitos, todavia, não deixam de ser expressivos. E isto porque, embora a Constituição de 1787 tenha sido a primeira constituição escrita do mundo moderno, e nela se tenham estabelecido, também pela vez primeira, a “separação de poderes” e as “garantias individuais”, tão crescente é o poder central que  – a despeito de todo o ostentado apanágio norte-americano de paradigma universal da democracia – Paulo Bonavides não hesitou em afirmar que o Presidente dos Estados Unidos “enfeixa pois mais poderes que um monarca absoluto. Luiz XIV, redivivo, trocaria talvez sem titubear o manto real de seu poder pela faixa presidencial de Kennedy ou Johnson” (Ciência Política, Fundação Getúlio Vargas, 1967, p. 238). E é a esse Luís XIV que se atribui a famosa frase L’État c’est moi.

Nessa ordem de considerações, ressalte-se que – em face da distinção entre as fontes formais e as fontes reais do direito – a constituição política significa propriamente a constituição formal. É a constituição jurídica da sociedade política (polis, Civitas, Estado-Nação). À constituição política tomada nesse sentido jurídico-formal pode-se opor a constituição política real. Uma e outra podem coincidir ou estar em desacordo. Quando a realidade constitucional política não corresponde à constituição formal, então vê-se aparecer aquilo que Georges Daskalakis chama de para-constituição ou contra-constituição. Na primeira hipótese (para-constituição), a constituição formal permanece em vigor, mas é modificada, em suas aplicações, por regras de direito escrito, pelos costumes, interpretação ou usos constitucionais. Na segunda hipótese (contra-constituição), a constituição torna-se mero “pedaço de papel” e as práticas políticas são radicalmente contrárias ao espírito e às instituições fundamentais do regi- me constitucional formalmente estabelecido (Georges Daskalakis, Droit constitutionnel et realité constitutionnel, tese apresentada ao Congresso Internacional de Juristas de Atenas, em 14 de junho de 1955, Compte-rendu du Congres International de juristes, Commission Internationale de juristes, La Haye, p. 41-45).

Esta distinção era já feita por Aristóteles, no Livro V da Política, ao dizer que a constituição legalmente estabelecida em vários Estados, ainda que não democrática, pode ser aplicada democraticamente, em razão dos costumes e da educação do povo, enquanto outros Estados nos oferecem o exemplo de uma constituição democrática e de um governo oligárquico.

O conceito de para-constituição suscita o problema do costume constitucional, que ocorre em países de constituição escrita. No Brasil e nos países centro-sul-americanos, por exemplo, a contra-constituição prevalece muitas vezes, porque as leis fundamentais têm sido elaboradas ao nível do idealismo utópico das elites marginais, sobre o qual as realidades sociais e as práticas políticas manifestam um desmentido inapelável, como faz ver reiteradamente Oliveira Vianna (1883-1951). O caudilhismo e a predominância das oligarquias, na realidade constitucional hispano-americana, são exemplos que ilustram a hipótese de Aristóteles: conflito entre a constituição real, oligárquica, e a constituição formal, que é geralmente uma carta ideológico-democrática.

De outro lado, nas democracias modernas, a realidade dos grupos políticos mais ou menos esotéricos, ou do poder econômico manipulador do poder político, é a fonte da contra-constituição, enquanto o princípio da origem popular do governo corresponde à expressão teórica da constituição formal. É também importante considerar a influência do poder militar, e não é em vão que se tem falado de Estado militarista.

O ponto de vista sob o qual os juristas estudam o direito é o das fontes formais. Esse formalismo, legítimo em si mesmo, deve ser completado por uma visão sociológica do fenômeno jurídico. Quanto ao direito constitucional, é preciso reconhecer que uma constituição, elaborada segundo os preceitos da técnica jurídica seguidos pelo legislador constituinte, procede de influências ideológicas, isto é, de uma filosofia, assim como de circunstâncias históricas que condicionam os movimentos políticos, as revoluções e as reformas legislativas. O direito constitucional, e toda a ordem jurídica, não se reduz à pura normatividade, mas consiste na “síntese da tensão entre a norma e a realidade” (Manuel García Pelayo, Derecho Constitucional Comparado, Revista de Oc- cidente, Madrid, 3a ed., 1953, p. 20).

Tudo isso, que se poderia chamar “o problema da constituição”, nos coloca diante do seguinte: se é verdade que as leis devem ser construídas sobre a realidade, é isso ainda mais verdadeiro quando se trata da lei fundamental do Estado, especialmente ao fundar-se um novo Estado, porque então é preciso procurar instituições que sejam efetivamente ajustadas ao meio, aos hábitos sociais, às tradições locais, ao caráter geral do povo, enfim, todo um back-ground psicossociológico, geopolítico e econômico. Esta contextura natural da sociedade nos apresenta o que há de mais fundamental e mais essencialmente constitucional. É a constituição histórico-social, que deve servir de base à constituição jurídico-formal, a qual, por isso mesmo, não deve ser criada a priori, não pode ser fabricada à maneira de um relógio, não é obra de arte, mas fruto da prudência legislativa. Com essa prudência, o legislador, partindo de valores permanentes, intrínsecos à natureza humana, leva em conta, na formulação da norma, o contexto sócio-histórico característico de cada nação.

Fonte: Dicionário de Política – José Pedro Galvão de Sousa, São Paulo, 1998, p. 147/150