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Superendividamento: a lei do crédito responsável (Lei 14.181) altera o CDC com novas disposições para a prevenção e o tratamento do superendividamento.

A sanção da Lei 14.181, de 1º de julho de 2021, representa a conclusão de um longo iter histórico, de quase duas décadas, no qual o direito brasileiro incorporou um neologismo já presente em outros sistemas jurídicos para identificar uma nova realidade do mercado de consumo, o superendividamento. Afinal, a noção de dívida ou endividamento não exige maiores digressões para sua adequada compreensão comum ou técnica. O prefixo super denota algo superior, acima do comum ou próprio da normalidade das relações jurídicas e econômicas.  O endividamento é uma característica da sociedade de consumo contemporânea, baseada no crédito facilitado aos consumidores, sem a exigência de garantias tradicionais, vinculadas ao patrimônio, sobretudo para viabilizar a aquisição de produtos e serviços pelo contingente de pessoas que não disponha de recursos para adquiri-los à vista. O Código de Defesa do Consumidor, em sua redação original, já previa expressamente, no seu art. 52, deveres específicos aos fornecedores, no caso do “fornecimento de produtos ou serviços que envolvam outorga de crédito ou concessão de financiamento ao consumidor.” Reconhecia aí a existência de dois contratos vinculados entre si, o de compra e venda do produto ou de prestação de serviço, e o de outorga de crédito, espécie de mútuo ou financiamento para viabilizar o primeiro.

Ocorre que a regra prevista pelo legislador do CDC, em 1990, tornou-se insuficiente frente ao avanço da oferta de crédito e crescimento dos meios de acesso a estes serviços, não apenas em agências bancárias, mas junto a grandes lojas, agências de correios ou lotéricas, supermercados, dentre outros canais. Também a oferta de crédito por telefone, com ênfase em idosos e aposentados, as modalidades de crédito consignado, com reserva de parte dos salários ou proventos para pagamento da dívida, sem interferência do devedor, e a popularização de garantias fiduciárias para o consumo (e.g. alienação fiduciária), contribuíram para a popularização do crédito. Segundo dados de 2017, cerca de 85,5% da população brasileira com idade superior a 15 anos mantinha algum relacionamento bancário, sendo que delas, 61,8% tendo contratado com mais de uma instituição financeira. Do total de transações financeiras, ainda em dados de quatro anos atrás, 66% eram realizadas por meios remotos.

A inclusão financeira e o acesso ao crédito são decisivos para o desenvolvimento. Porém, destaca-se que sua oferta e concessão devem se dar de forma responsável, observando os deveres de informação e esclarecimento dos tomadores de crédito, assim como a previsão de meios que favoreçam o efetivo adimplemento das dívidas. A própria Organização de Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) emitiu, em 2019, uma Recomendação sobre Proteção do Consumidor em Crédito de Consumo, alertando para os efeitos nocivos do endividamento excessivo, tomando em conta tanto suas repercussões pessoais para o próprio consumidor, quanto para o sistema econômico como um todo (daí a noção de “endividamento de risco” adotada pela regulação bancária). É neste contexto que o superendividamento de consumidores é assumido como uma característica estrutural da sociedade de consumo contemporânea, tendo sua disciplina legislativa originalmente se estabelecido em países com alto grau de desenvolvimento, embora os efeitos da proteção ao superendividado sejam socialmente potencializados em países com maior grau de pobreza, por razões evidentes.

No Brasil, a Lei 14.181/2021 tem sua origem primária na sugestão de um anteprojeto elaborado por Claudia Lima Marques, Clarissa Costa de Lima e Karen Danilevicz Bertoncello, no âmbito do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Incorporado aos debates sobre o direito do consumidor a partir de então, quando da instituição, no Senado Federal, da Comissão de Juristas para atualização do Código de Defesa do Consumidor, deu lugar ao Projeto de Lei 281/2012, proposto pelo então Presidente da Casa, Senador José Sarney. Após longa tramitação legislativa, que mobilizou os órgãos e entidades do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor e juristas de diferentes origens, o projeto foi aprovado, sucessivamente, no próprio Senado Federal, por unanimidade, em 2015, partindo para a Câmara dos Deputados, onde, após intensa negociação foi aprovado com modificações, em 2021. Retornando ao Senado Federal, em pouco menos de um mês foi novamente aprovado por unanimidade, e encaminhado à sanção presidencial.

A Lei 14.181/2021, ao disciplinar a prevenção e o superendividamento de consumidores, implica alterações em diversas disposições do CDC. Inicialmente, inclui novos princípios à Política Nacional das Relações de Consumo (art. 4º, IX e X), instrumentos para sua execução (art. 5º, VI e VII) e direitos básicos ao consumidor (art. 6º, XI a XIII). Adiante, especifica novas cláusulas abusivas no rol do art. 51 do CDC (incisos XVII e XVIII), e inclui um novo e amplo capítulo ao Código, intitulado “Da prevenção e do tratamento do superendividamento (Capítulo VI-A), com os artigos 54-A a 54-G. Por fim, inclui ao final do Título III do Código (“Da Defesa do Consumidor em Juízo”), um novo capítulo intitulado “Da conciliação no superendividamento (Capítulo V), que a rigor trata do procedimento judicial de repactuação de dívidas, iniciada com a conciliação (art. 104-A), que também poderá ser promovida, administrativamente, pelos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (art. 104-C). Todavia, sendo inexitosa a conciliação, conferindo ao juiz o poder de instaurar, a pedido do consumidor, processo para revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório (art. 104-B).

Houve, por outro lado, alguns vetos por parte do Presidente da República (art. 51, XIX, art. 54-C, I e parágrafo único, art. 54-E, que seriam incluídos no CDC, e art. 4º da própria Lei 14.181/2021, dispondo sobre sua vigência), cuja apreciação será feita pelo Congresso Nacional.  Mais representativos são os que se dirigiram aos contratos de outorga de crédito com liquidação mediante consignação em folha de pagamento do devedor. Neste caso, foi vetado integralmente o art. 54-G, que previa limite de margem consignável (30% com extensão de mais 5% para o caso de cartão de crédito) e procedimentos para a contratação (inclusive assegurando o direito de arrependimento), visando disciplinar uma das modalidades de crédito que, na experiência brasileira, caracteriza-se pelo desrespeito e flexibilidade da margem consignável fixada em regulamento, bem como dos obstáculos impostos ao consumidor para resolver o contrato ou suspender o pagamento. Preservou-se apenas a exigência de que a formalização do contrato se dê após a consulta pelo fornecedor junto à fonte pagadora, sobre a existência de margem consignável (art. 54-G, §1º), sem, contudo, contar com sanção por descumprimento, objeto das disposições vetadas. Resta a expectativa que o Congresso Nacional possa corrigir este notável erro de avaliação do Presidente da República, ao deixar sem disciplina legal um dos principais meios de endividamento dos consumidores que, sem limites precisos, pode retirar-lhe diretamente os recursos de subsistência decorrentes da sua remuneração pelo trabalho.

Examinamos, a seguir, algumas das principais disposições da nova lei.

Novos princípios, instrumentos e direitos básicos do consumidor relativos à prevenção e tratamento do superendividamento

Uma das bases da disciplina legal do superendividamento e suas consequências parte do princípio de que a concessão do crédito responsável e a definição de um regime de insolvência de pessoas físicas atende a diferentes objetivos, desde o auxílio a devedores honestos, mas desafortunados, como também aos próprios credores, que podem reembolsar-se em condições de relativa igualdade, ao menos em parte do que pagaram, com redução de custos de cobrança, e depreciação do patrimônio do devedor, a redução de prejuízos decorrentes de uma avaliação de risco imprecisa, bem como de outros custos sociais decorrentes do inadimplemento (com efeitos na saúde pessoal dos consumidores, aumento da criminalidade, instabilidade familiar, desemprego, dentre outros fatores).

Em razão disso é que o art. 4º do CDC passa a contar com dois novos princípios: o “fomento de ações direcionadas à educação financeira e ambiental dos consumidores” (inciso IX) e a “prevenção e tratamento do superendividamento como forma de evitar a exclusão social do consumidor” (inciso X).

educação financeira do consumidor é objetivo a ser alcançado em comum pelo Estado, pela sociedade e pelos próprios fornecedores. Registre-se: não se trata de reconhecer a culpa dos consumidores pelo próprio superendividamento (ou de que os pobres são responsáveis pela própria pobreza); mas a constatação de que o atendimento ao direito básico do consumidor à informação adequada e clara, em relação aos serviços financeiros, supõe a formação de sua capacidade de bem compreender suas características e as consequências da decisão de contratá-los.

Já o segundo princípio dá conta da dimensão social da lei, e da máxima projeção dos direitos fundamentais sobre a relação de consumo: o objetivo da prevenção e tratamento do superendividamento é o de evitar a exclusão social do consumidor, permitindo-lhe um “novo começo”. Trata-se de identificar no superendividamento, sobretudo dos mais pobres, que contam exclusivamente com o acesso ao crédito financeiro para satisfazer necessidades urgentes ou complementar eventualmente a renda, um fator de restrição a bens essenciais à vida, afetando-lhes interesses existenciais, e não apenas econômicos.

Esta compreensão vincula-se então com a própria preservação do mínimo existencial tanto na repactuação das dívidas, quanto na concessão de crédito, o que passa a ser previsto como novo direito básico do consumidor, ainda que seu conteúdo preciso deva ser definido por norma regulamentar (novo art. 6º, XII, do CDC). Em essência, trata-se de proteger-se a parcela dos rendimentos do consumidor necessárias à satisfação das suas necessidades básicas e as de sua família.

Da mesma forma, dentre os instrumentos para execução da Política Nacional das Relações de Consumo, foram incluídos no art. 5º do CDC dois incisos prevendo a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural (inciso VI), e de núcleos de conciliação e mediação de conflitos oriundos de superendividamento (inciso VII). Neste caso, trata-se de um dos desafios para efetividade da norma, que é a sua implementação na estrutura dos diversos órgãos do Poder Judiciário, da Defensoria Pública, do Ministério Público e do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor, de arranjos que promovam, especialmente, a mediação e negociação entre o consumidor superendividado e seus credores. Não se descarta, inclusive, que conte com a participação dos próprios fornecedores (assim o novo art. 104-C), estimulando e facilitando tais práticas quando se identifique nelas um meio eficiente para recuperação, no todo ou em parte, dos respectivos créditos, e a própria preservação e fidelização do consumidor.

Registre-se, ainda, a definição de novos direitos básicos do consumidor no art. 6º do CDC. Ao lado do já mencionado direito à preservação do mínimo existencial (novo inciso XII), também se reconhece a “garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e de prevenção e tratamento de situações de superendividamento, preservado o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, por meio da revisão e da repactuação da dívida, entre outras medidas;” (novo inciso XI). Por esta nova regra é reconhecido um direito subjetivo do consumidor a: a) garantia de práticas de crédito responsável; b) educação financeira; c) prevenção e tratamento do superendividamento; d) revisão e repactuação de dívidas pelo consumidor em situação de superendividamento. No tocante a esta última hipótese, há consequências práticas precisas, assegurando ao consumidor superendividado os direitos, exceções, pretensões e ações inerentes. Assim, por exemplo, nada impede, no caso de execução da dívida, que o consumidor apresente exceção visando o reconhecimento da situação de superendividamento e a conciliação, ou que, proposta a ação de superendividamento, o juízo atraia as demais que versem sobre dívidas passíveis de revisão ou repactuação.

Aproveitou, o legislador, também para especializar o direito à informação sobre preços, exigindo que seja prestada segundo unidade de medida, “tal como por quilo, por litro, por metro ou por outra unidade, conforme o caso.” É norma que acrescenta ao já disposto no art. 6º, III, do CDC, ainda que sem maior destaque.

Novas cláusulas e práticas abusivas

A Lei 14.181/2021 inclui, no rol do art. 51 do CDC, novos tipos de cláusulas abusivas. Notadamente duas: a) as que condicionem ou limitem de qualquer forma o acesso aos órgãos do Poder Judiciário (inciso XVII); e b) as que estabeleçam prazos de carência em caso de impontualidade das prestações mensais ou impeçam o restabelecimento integral dos direitos do consumidor e de seus meios de pagamento a partir da purgação da mora ou do acordo com os credores (inciso XVIII). No primeiro caso, trata-se de clara reação do legislador a uma das tendências equívocas da desjudicialização de conflitos, em voga entre nós, que vem condicionando, sem previsão legal, a proposição de ações pelos consumidores, ao prévio registro da pretensão perante serviços governamentais ou não, de reclamações, e a respectiva negativa do fornecedor. Resulta da confusão entre iniciativas louváveis e de grande importância, como os próprios esforços de desjudicialização e bons serviços de mediação e solução de conflitos (como p.ex. o portal ‘Consumidor.gov’, da Secretaria Nacional do Consumidor), e a imposição de um obstáculo ao exercício do direito fundamental de acesso à justiça (art. 5º, XXXV, da Constituição).

A outra hipótese, do inciso XVIII, visa impedir que o consumidor que venha a purgar a mora ou recorrer à conciliação no caso de superendividamento, sofra prejuízo em relação aos serviços que tenha contratado, os quais deverão ser reestabelecidos imediatamente, em sua integralidade.

O inciso XIX, previsto no projeto de lei aprovado, foi objeto de veto pelo Presidente da República. Definia como abusivas as cláusulas que previssem “a aplicação de lei estrangeira que limite, total ou parcialmente, a proteção assegurada por este Código ao consumidor domiciliado no Brasil.” As razões do veto limitam-se a apontar eventual contrariedade ao interesse público e, em termos genéricos, indicar a restrição à competividade e aumento da produtividade, limitando opções aos consumidores brasileiros em relação a empresas domiciliadas no exterior, indicando que seria “impraticável que empresas no exterior conheçam e se adequem às normas consumeristas nacionais.” A rigor, a regra em questão especializa a própria noção de ordem pública de que se reveste o Código de Defesa do Consumidor (art. 1º), de modo que sua previsão teria caráter pedagógico. Mantido o veto, remanesce o efeito do próprio art. 1º do CDC; se afastado pelo Congresso Nacional, reforça o caráter de ordem pública de que se reveste o Código. Sua interpretação, naturalmente, não se realiza sem as demais normas de conexão próprias do direito internacional privado, em especial a que define a lei aplicável às obrigações (art. 9ºda Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro).

Em relação às práticas abusivas, a inserção do art. 54-G prevê, “sem prejuízo do disposto no art. 39 deste Código”, novas condutas vedadas ao fornecedor de crédito. Envolvem a cobrança ou débito em conta de compra realizada com cartão de crédito, e que seja objeto de contestação (inciso I); a recusa da entrega ao consumidor e demais coobrigados da minuta do contrato em papel ou suporte duradouro, antes da sua celebração, e após, de cópia do contrato celebrado (inciso II); e a imposição de impedimento ou dificuldade, no caso de uso fraudulento do cartão de crédito ou similar de que o consumidor seja vítima, para que peça anulação ou bloqueio do pagamento, bem com a restituição dos valores recebidos indevidamente (inciso III).

Novas regras para oferta de crédito e prevenção ao superendividamento

A introdução de um novo capítulo (VI-A) ao Título I do CDC, intitulado “Da prevenção e do tratamento do superendividamento”, já no início, em seu art. 54-A, §1º, consigna a definição legal de superendividamento como “a impossibilidade manifesta de o consumidor pessoa natural, de boa-fé, pagar a totalidade de suas dívidas de consumo, exigíveis e vincendas, sem comprometer seu mínimo existencial, nos termos da regulamentação.” A definição compreende diferentes elementos. Um primeiro, elemento subjetivo: o consumidor superendividado, titular dos direitos, pretensões, ações e exceções previstos na lei, é pessoa natural e de boa-fé. Exclui-se da definição legal, portanto, tanto os consumidores pessoa jurídica, quanto os que tenham contraído dívidas mediante fraude ou má-fé, o que inclui o comportamento daquele que as contrata já com o propósito de não adimplir. Um segundo, elemento objetivo: as dívidas sobre as quais incidem as normas do CDC, inclusive as relativas à conciliação, revisão ou repactuação são aquelas decorrentes de relações de consumo (dívidas de consumo), não abrangendo, portanto, as que tenham outra natureza, como é o caso, por exemplo, de dívidas tributárias, decorrentes de relações familiares (ex. obrigações alimentares decorrentes de parentesco), dentre outras. Ainda, para fins didáticos, permita-se identificar um terceiro aspecto, que se denomina aqui, elemento teleológico: a impossibilidade de pagamento se dá em vista do comprometimento do mínimo existencial do consumidor; logo, não será qualquer situação de endividamento abrangida pela lei, senão aquela que, comprovadamente, possa comprometer a subsistência do consumidor. Aí, inclusive, a exclusão das dívidas contraídas para aquisição ou contratação de produtos e serviços de luxo de alto valor (art. 54, §3º, in fine).

Na oferta do crédito, acrescenta-se às informações já previstas no art. 52 do CDC, um rol de novas informações específicas, visando o esclarecimento do consumidor, inclusive no tocante à onerosidade do crédito e todos os valores cobrados, ao prazo da oferta, que deve ser no mínimo de 2 dias, permitindo a reflexão, e sobre o direito à liquidação antecipada e não onerosa do débito. Da mesma forma, define-se um standard mínimo de informação comum à oferta de crédito, na venda a prazo ou na fatura mensal – em referência provável ao cartão de crédito –, exigindo que conste nelas o custo efetivo total, a identificação do agente financiador e a soma total a pagar, com e sem financiamento (novo art. 54-B).

Ainda em relação à oferta de crédito, publicitária ou não, inclui-se no Código a vedação para que, expressa ou implicitamente: a) se indique que a operação de crédito será concluída sem consulta a serviços de proteção ao crédito ou sem avaliação da situação financeira do consumidor (art. 54-C, II); b) oculte ou dificulte a compreensão sobre os ônus e os riscos da contratação do crédito ou da venda a prazo (art. 54-C, III); c) seja realizado mediante assédio ou pressão ao consumidor para contratar, principalmente quando se trate de consumidor idoso, analfabeto, doente ou em estado de vulnerabilidade agravada, ou se a contratação envolver prêmio (art. 54-C, IV); e d) condicione o atendimento de pretensões do consumidor, ou início das tratativas, à renúncia ou desistência de demandas judiciais, pagamento de honorários advocatícios ou depósitos judiciais (art. 54-C, V).

Trata-se de promover, já na fase prévia à formação do contrato, o crédito responsável, tomando como critério a avaliação da capacidade de pagamento do consumidor que contrai a dívida, bem como a compreensão sobre as consequências da sua decisão. Igualmente, consagra a proibição do assédio de consumo – inspirado na legislação europeia (art. 9º da Diretiva 2005/29/CE, sobre práticas comerciais desleais), com especial proteção aos consumidores com vulnerabilidade agravada. Neste particular, são notórias na experiência brasileira atual, as práticas maliciosas na oferta de crédito a idosos, mediante telefonemas sucessivos e prestação de informações confusas ou em velocidade e conteúdo ordenados de tal modo a impedir sua adequada compreensão. A menção especial aos analfabetos igualmente merece destaque, considerando a realidade brasileira em que, segundo os últimos dados disponíveis, 6,8% das pessoas com mais de 15 anos de idade ostentam esta condição, concentrando-se um índice significativo entre os maiores de 60 anos (18,6% do total). Relevante o registro, ainda, para traçar os efeitos do assédio de consumo, de que o equivalente a 51,2% da população brasileira com idade igual ou superior a 25 anos não completaram a educação escolar básica.

Já o inciso V, do art. 54-C, ao proibir que se condicione o atendimento de pretensões do consumidor ou início de tratativas a renúncia ou desistência de demandas judiciais, pagamento de honorários advocatícios ou depósitos judiciais, é regra que se relaciona a oferta de crédito feita, geralmente, no contexto de uma renegociação de dívida existente, inclusive para permitir seu adimplemento; situação que pode dar causa a uma sucessão de contratos de crédito, de modo a favorecer o superendividamento. Visa-se impedir, neste caso, o abuso do credor na restrição ao exercício regular de direitos pelo consumidor.

Houve dois vetos do Presidente da República a disposições do art. 54-C. O primeiro relativo ao seu inciso I, que proibia, na oferta do contrato, “fazer referência a crédito ‘sem juros’, ‘gratuito’, ‘sem acréscimo’ ou com ‘taxa zero’ ou a expressão de sentido ou entendimento semelhante”. A justificativa para o veto é de que, de fato, há fornecedores que oferecem crédito a consumidores, “incorporando os juros em sua margem sem necessariamente os estar cobrando implicitamente”, ou mesmo empresas capazes de ofertar crédito sem juros. O que a justificativa para o veto ignora é o fato de que, na oferta de consumo, a utilização das expressões vazadas em caráter exemplificativo pela lei se dá, precisamente, para ocultar do consumidor a existência de juros ou acréscimos, impedindo seu esclarecimento sobre a própria existência do crédito, comum, especialmente, no varejo popular. Confunde, igualmente, o fato de que a norma em questão não proíbe a oferta do crédito nos termos em que livremente disponha o fornecedor (não afeta a liberdade negocial do fornecedor), mas apenas que faça referência às condições reais do negócio a ser celebrado, em caráter exemplificativo, para que não resulte indução do consumidor em erro. Espera-se, neste particular, a rejeição do veto pelo Congresso Nacional, valorizando-se a útil e prática disposição aprovada. O parágrafo único do art. 54-C, por mencionar que que o inciso I não se aplicava à oferta para pagamento por meio de cartão de crédito, acabou sendo vetado por arrastamento.

Volta-se a lei, igualmente, às condutas exigidas do fornecedor no caso da concessão de crédito, tanto em relação ao dever de informação e esclarecimento do consumidor (novo art. 54-D, I), assegurando-lhe, inclusive, conhecimento sobre a identidade do fornecedor do crédito (novo art. 54-D, III), e o dever deste em proceder a avaliação das condições subjetivas do consumidor e sua capacidade de endividamento (novo art. 54-D, II). Novidade relevante diz respeito às sanções previstas no caso de descumprimento destes deveres: poderão incluir a redução de juros e encargos da dívida ou de qualquer acréscimo ao valor principal, e a dilação do prazo de pagamento, mediante decisão judicial, sem prejuízo de outras sanções e da indenização por perdas e danos que venham a causar para o consumidor.

Merece atenção ainda, o reconhecimento legal da vinculação entre fornecimento de produto ou serviço e o contrato de concessão de crédito que viabilize o pagamento do primeiro. Neste ponto, o novo art. 54-F procurou exaurir as possibilidades de classificação. Dispõe: “São conexos, coligados ou interdependentes, entre outros, o contrato principal de fornecimento de produto ou serviço e os contratos acessórios de crédito que lhe garantam o financiamento quando o fornecedor de crédito: I – recorrer aos serviços do fornecedor de produto ou serviço para a preparação ou a conclusão do contrato de crédito; II – oferecer o crédito no local da atividade empresarial do fornecedor de produto ou serviço financiado ou onde o contrato principal for celebrado.” A rigor, a conexidade contratual aqui se dá em razão da dependência entre os contratos. A existência de um justifica-se pela do outro, daí a coligação. A referência a contrato principal e acessório não é a mais precisa, embora vise reforçar a noção de interdependência. O crédito se outorga para pagar o preço, podendo ser dito, igualmente, que só há a compra e venda de consumo ou a prestação de serviços, porque o contrato de crédito viabilizou os recursos para pagamento pelo consumidor. Em termos conceituais a regra explicita o que já era afirmado por doutrina e jurisprudência.

Os critérios para reconhecimento da conexidade devem ser destacados. Resultam do fato de o próprio fornecedor do produto ou serviço participar da oferta do crédito, na preparação ou conclusão do contrato, ou ainda quando a oferta se realize no “local da atividade empresarial” do fornecedor do produto ou serviço, ou onde o contrato principal for celebrado. Abrange, naturalmente, os contratos celebrados pela internet. Sua utilidade, resulta, especialmente, da vinculação de ambos os contratos quanto ao seu destino: o exercício do direito de arrependimento em relação a um implica também na resolução do outro; a resolução por inadimplemento do contrato de fornecimento do produto ou serviço, gera a pretensão do consumidor para resolver o relativo a outorga do crédito; assim também a invalidade ou ineficácia do contrato de fornecimento do produto ou serviço afeta o de outorga de crédito, hipótese em que é assegurado ao fornecedor deste último o direito à restituição dos valores entregues ao consumidor, inclusive dos tributos incidentes (art. 54-F, §4º).

O procedimento de conciliação e tratamento do superendividamento

Dos vários aspectos da nova legislação, deve contar com sensível repercussão, em termos práticos, a disciplina do procedimento de repactuação de dívidas, por intermédio de conciliação entre o superendividado e seus credores, ou sendo inexitosa, o procedimento de revisão e integração dos contratos e repactuação das dívidas remanescentes mediante plano judicial compulsório. Concebido sob influência do direito comparado, mas também a partir da experiência de mais de uma década do Poder Judiciário em diversos estados brasileiros, o novo capítulo VI-A, introduzido no CDC, organiza um procedimento com tendência a substituir, com méritos, a declaração judicial de insolvência, regulada pelo art. 748 e seguintes do CPC de 1973, cuja vigência foi preservada pelo art. 1.052 do CPC de 2015 – porém em notório desuso.

A primeira fase, da conciliação, poderá ser feita judicialmente, quando o consumidor requeira ao juiz a instauração do processo de repactuação de dívidas (novo art. 104-A), ou extrajudicialmente, pelos órgãos públicos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor – os Procons (novo art. 104-C). Sendo instaurado processo judicial, prevê-se a realização de audiência de conciliação, presidida pelo juiz ou por conciliador credenciado pelo juízo, com a presença dos credores. Nela o consumidor poderá apresentar proposta de plano de pagamento com prazo máximo para satisfação da dívida de 5 anos, “preservados o mínimo existencial, nos termos da regulamentação, e as garantias e formas de pagamento originalmente pactuadas”. Admite-se, portanto, no plano, sobretudo a dilação do prazo, preservando-se as demais características da dívida.

A conciliação extrajudicial tanto pode decorrer de reclamações individuais nos órgãos de defesa do consumidor, mediante a promoção de audiência global de conciliação, chamando todos os demais credores, quanto da atuação destes órgãos, em convênio com instituições credoras e suas associações representativas. Os acordos que resultem da conciliação administrativa, de sua vez, devem incluir a data a partir da qual será providenciada a exclusão do devedor dos bancos de dados de inadimplentes, e o compromisso do consumidor de não agravar sua situação de superendividamento, contraindo novas dívidas.

No caso da conciliação judicial, o não comparecimento injustificado dos credores ou de seus representantes, com poderes para transigir, na audiência de conciliação, importará suspensão de exigibilidade do crédito e interrupção dos encargos da mora, bem como sua preterição para o final na ordem de credores a receberem seus créditos de acordo com o plano de pagamento. Trata-se, sem dúvida, de forte incentivo a sua participação.

Havendo conciliação com qualquer credor, deverá ser homologada pelo juiz, em decisão na qual conste a descrição do plano de pagamento da dívida, tendo “eficácia de título executivo e força de coisa julgada” (art. 104-A, §3º). Isso quer dizer que os termos da dívida, tal qual previstos no acordo homologado, não deve ser revisado, podendo seus efeitos serem resolvidos apenas no caso de descumprimento, pelo consumidor, das obrigações que assume, de abster-se do agravamento da sua situação (art. 104-A, §4º, IV).

Por outro lado, de modo a evitar o recurso reiterado ao procedimento por parte do consumidor do processo de repactuação de dívidas, há duas distinções relevantes expressas na lei: a) o pedido de repactuação não importará na declaração de insolvência civil; e b) novo pedido somente poderá ser feito após o prazo de 2 anos contados da liquidação das obrigações previstas no plano de pagamento homologado, ainda que se admita, conforme o caso, a possibilidade de eventual repactuação (art. 104-A, §5º).

A lei, ao dispor sobre o plano de pagamento das dívidas que resulta da conciliação, define que nele constarão medidas de dilação de prazo, redução de encargos da dívida ou da remuneração do fornecedor (p.ex. juros), entre outras destinadas a facilitar o adimplemento. Igualmente, deverá dispor sobre a suspensão ou extinção das ações judiciais em curso que digam respeito às dívidas, o que notadamente visa abranger as pretensões do credor, assim como a data de exclusão dos bancos de dados restritivos de crédito, e a as obrigações que o consumidor assume visando não agravar sua situação (art. 104-A, §4º). Em relação ao plano judicial compulsório que terá lugar se frustrada a conciliação, não há previsão específica, nada impedindo que se sirva dos mesmos elementos.

A ausência de conciliação com um ou mais credores dá causa a que o consumidor possa requerer ao juiz a instauração de processo de revisão das dívidas cujo objeto abrange a revisão, integração e repactuação das dívidas remanescentes (que não tenham sido objeto de acordo na fase anterior), Para tanto, citará os credores cujos créditos não tenham sido objeto de acordo. Após a citação, os credores terão o prazo de 15 dias para recusar aderir ao plano ou renegociar, apresentando documentos (p.ex. poderão contestar as informações prestadas pelo consumidor sobre a dívida).

A imposição do plano compulsório de pagamento tanto poderá ser feita pelo juiz diretamente, quanto por administrador que nomeie, sem ônus para as partes – hipótese que remete à dúvida sobre o perfil e origem do administrador e sua eventual remuneração. Se nomeado administrador, este terá 30 dias, após cumpridas as diligências necessárias, para apresentar o respectivo plano. Este deverá assegurar, no mínimo, o valor principal da dívida, corrigido monetariamente por índices oficiais de preço, com o pagamento da primeira parcela em no máximo 180 dias contados da sua homologação, e a quitação em até 5 anos (art. 104-B, §4º). É precisamente desta providência, que viabiliza o recebimento de, ao menos, parte substancial da dívida pelos credores, de onde resulta a identificação de uma cultura de pagamento da dívida pela nova lei, ao invés de sua prorrogação indefinida no tempo.

Uma nova cultura do crédito responsável

Para finalizar, cabem dois registros pessoais, com a segura distância do tempo. O primeiro de um almoço, há muitos anos, no intervalo de um seminário promovido na sede do Banco Central do Brasil. Na ocasião, quando o tema do superendividamento e o modo como diferentes países o enfrentavam veio à mesa, um importante jurista pouco familiarizado com o tema sentenciou: “trata-se do direito dos caloteiros!” O segundo, da mesma época, dá conta da reação de um brilhante executivo do sistema financeiro sobre a incipiente tramitação do projeto de lei que ora veio a ser sancionado: “O princípio é de que quem deve tem que pagar, esta lei jamais será aprovada!”

Em ambos, a síntese da evolução, que antes de uma simples alteração legislativa, é cultural. A Lei do Crédito Responsável e as alterações que promove no CDC representam a renovação da cultura do crédito. É uma nova visão sobre o crédito e seu lugar na sociedade de consumo contemporânea: a “cultura do crédito responsável” e a “cultura do pagamento das obrigações”.

Dois desafios se impõem. O primeiro diz respeito ao convencimento do Congresso Nacional para que não acolha os vetos do Presidente da República às disposições da lei que tratam de temas relevantes, caso da informação na oferta de crédito e a disciplina do crédito consignado. O segundo é o da efetiva implementação da lei, que em relação, especialmente, ao novo procedimento de conciliação e tratamento do superendividamento, depende da sensibilidade e atuação do Poder Judiciário e demais instituições do sistema de justiça, assim como dos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor. Não exclui, igualmente, fornecedores de crédito responsável que compreendam o caráter estrutural da crise de pagamentos que conduz ao superendividamento e tenham presente a dimensão social de sua atuação. É indisfarçável, por fim, o papel que os juristas, de um modo geral, exercerão a partir de agora, na divulgação e interpretação das novas normas do CDC, desenvolvendo seu sentido e alcance, em face das exigências de sua aplicação prática.

Fonte: Migalhas, por Bruno Miragem